BOCA DO ACRE (Thomson Reuters Foundation) - Dentro da Reserva Indígena 124, no Estado do Amazonas, o cacique Geraldo Apurinã caminha ao longo de uma trilha lamacenta, passando por árvores imponentes ainda intocadas por madeireiros amazônicos.
Grande parte da terra ao redor da reserva teve suas árvores derrubadas. Áreas de pastagem de gado agora ocupam espaços a perder de vista da estrada, destruindo o que costumava ser a imponente floresta amazônica.
“Trinta anos atrás, toda essa área era floresta intocada”, afirma Cosme da Silva, ativista local da Comissão Pastoral da Terra (CPT) em Boca do Acre, na região sudoeste do Estado do Amazonas.
“Hoje, tudo isso foi tomado por ‘grileiros’ que destruíram a floresta para criar gado”, disse Silva à Thomson Reuters Foundation do banco de passageiro da caminhonete 4x4 ao passar por terras desmatadas na reserva indígena.
Enquanto políticos planejam uma mudança radical para a demarcação de terras para 900 mil povos indígenas do Brasil, ambientalistas afirmam que áreas como a Reserva 124, onde o território é propriedade formal de comunidades indígenas, representam a melhor maneira de salvar florestas ameaçadas de extinção.
“Tenho certeza que preservamos melhor as florestas do que outras comunidades próximas”, disse o cacique Geraldo Apurinã, de pé na varanda de sua casa, construída dentro da reserva.
COLHEITA SEM DEGRADAÇÃO
A comunidade indígena Apurinã recebeu o título de propriedade formal da área de 450 quilômetros quadrados em 1988, quando o Brasil viu aprovada uma nova Constituição, com garantia a direitos dos povos indígenas.
Antes da demarcação, os moradores enfrentavam violência constante de fazendeiros e agricultores que disputavam a terra, disse Maria José Apurinã, 40 anos, mãe de quatro filhos e esposa do cacique.
“Eu vi muito sangue derramado (por essa terra)”, disse Maria José, sentada em sua casa de madeira. “Mas agora que temos a terra, é melhor para nossos filhos... esse é o nosso lugar.” Os cerca de 800 moradores da reserva ganham a vida pescando, caçando e colhendo castanhas e açaí que crescem naturalmente na área, disse Apurinã, de 57 anos.
“Nós apenas colhemos as castanhas, não destruímos as árvores”, disse ele, endossando o que já foi constatado por pesquisas.
A floresta amazônica é muito melhor preservada onde as comunidades indígenas são donas formais de suas terras do que áreas similares não demarcadas, de acordo com um estudo realizado por pesquisadores norte-americanos na floresta peruana em abril, sustentando as descobertas de dois estudos anteriores.
Na Amazônia brasileira, uma área maior que a Alemanha foi desmatada desde 1988, de acordo com dados do governo.
Após anos de declínio, a taxa de desmatamento aumentou 29 por cento no ano passado em relação a 2015, de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Com esse avanço, ambientalistas dizem que o governo não conseguirá atingir seu objetivo de desmatamento zero na Amazônia até 2030.
As florestas sob o poder dos indígenas, porém, são as mais bem protegidas no Brasil, afirmou à Thomson Reuters Foundation Luciano Evaristo, do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
De acordo com Evaristo, a demarcação de terras para comunidades indígenas está entre as estratégias mais baratas para proteger a Amazônia.
“ÍNDIOS DEVEM DECIDIR”
Mas os planos de destinar novas terras para os povos indígenas estão paralisados há meses e lideranças indígenas temem que movimentos políticos ponham um fim às suas reivindicações.
Os parlamentares estão planejando uma grande transformação na Fundação Nacional do Índio (Funai). De acordo com relatório de parlamentares publicado em maio, o órgão é ineficaz, está sujeito a “interesses externos” e toma suas decisões de demarcação de terras com base em dados imprecisos.
O orçamento da Funai foi reduzido em mais de 40 por cento no ano passado. A Funai está desatualizada, diz a bancada ruralista, que propôs mudanças no processo de demarcação da terra, incluindo a abertura de reservas indígenas às empresas de mineração.
“Há índios que querem se tornar mineradores e produtores, e eles devem ter a liberdade de decidir por si mesmos”, afirmou em maio o deputado Nilson Leitão (PSDB-MT), autor do relatório e líder da bancada ruralista.
“A Funai tem sido excessivamente protetora e paternalista... Os índios podem viver em uma grande mina, enquanto o povo morre de fome”, disse ele sobre as comunidades muitas vezes mergulhadas na pobreza.
À ESPERA DE TERRA
Francisco da Silva de Araújo, 56 anos, é o líder indígena da comunidade de Valparaíso, cuja terra ancestral na bacia amazônica ainda não foi formalmente demarcada.
Ele disse que as mudanças propostas na Funai poderiam significar o fim da esperança de seus povos de ter sua própria terra, prejudicando os esforços de conservação da Amazônia no processo.
“Estamos lutando para que nossa terra seja demarcada desde 1991”, disse Araújo na sequência de uma reunião com autoridades da Funai no Estado do Amazonas sobre a reivindicação de longa data de sua tribo. “Estamos muito preocupados com essas mudanças na Funai”, .
Sua comunidade tem enfrentado incursões frequentes de pessoas de fora que vêm cortar árvores, disse Araújo.
Sem direitos formais na terra, não há muito o que as cerca de 20 famílias que moram na área possam fazer para proteger a floresta.
“Grileiros invadiram a área”, disse Araújo. Durante um desses incidentes, fazendeiros armados com foices ameaçaram os moradores indígenas.
Wagner Gallo, um funcionário do escritório local da Funai no Estado do Amazonas, disse que os cortes no orçamento e as propostas de mudanças políticas prejudicaram a capacidade da agência de ajudar pessoas como o cacique Araújo.
Mesmo antes dos últimos cortes no orçamento, a organização estava lutando, disse o funcionário do governo. Na região em torno de Boca do Acre, cerca de 15 por cento da equipe foi demitida.
“Os números mostram que a demarcação de terra para os indígenas é a melhor maneira de proteger a floresta”, disse Gallo à Thomson Reuters Foundation após uma reunião com Araújo e outros líderes indígenas.
“As próprias comunidades muitas vezes protegem a floresta - quando alguém invade, eles denunciam”, afirmou Gallo. “Mas há interesses econômicos de olho nas terras indígenas.”
* A Society of Environmental Journalists (SEJ) forneceu suporte financeiro de viagem para essa reportagem
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