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Part of: Amazônia: crimes sem punição
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Violência na Amazônia rural aumenta em meio à confusão burocrática de títulos de terra

by Chris Arsenault e Karla Mendes
Thursday, 6 July 2017 15:14 GMT

Agricultor desabrigado Manuel Freitas Camurça posa para uma foto segurando uma imagem de sua casa que foi destruída durante um conflito de terra com um poderoso fazendeiro em Boca do Acre, no estado do Amazonas, em 24 de maio de 2017 (Chris Arsenault/Thomson Reuters Foundation)

Image Caption and Rights Information

BOCA DO ACRE, 6 de julho (Thomson Reuters Foundation) - Para um fazendeiro na Amazônia brasileira, Manoel Freire Camurça estava se saindo muito bem até que um poderoso empresário local incendiou sua casa e tomou os campos ao redor dos quais ele havia passado sua vida.

 

O despejo de Camurça ocorreu há oito meses, quando autoridades estavam finalizando sua reivindicação de 500 hectares de terra no sudoeste do estado do Amazonas, onde ele passou quase três décadas cultivando milho, açúcar e feijão.

 

"Eu perdi tudo", disse Camurça, de 61 anos, à Thomson Reuters Foundation, enxugando as lágrimas.

 

"Eu fui à cidade e quando voltei tudo tava(sic) queimado e destruído."

 

Outros pequenos agricultores de sua vila tiveram o mesmo destino depois que um grande fazendeiro disse que ele era o dono legítimo da terra.

 

A história de Camurça destaca um ambiente cada vez mais violento em regiões do Brasil rural que, segundo autoridades do governo, é alimentado por escrituras pouco claras, corrupção local e um sistema em que agências estatais concorrentes trabalham na regularização de terras.

 

‘MORTES NO CAMPO’

 

Pelo menos 36 pessoas morreram em conflitos de terra no Brasil nos primeiros cinco meses deste ano, de acordo com a Comissão Pastoral da Terra.

 

Segundo um funcionário do governo, 2017 foi o ano mais violento neste século em relação a conflitos fundiários.

 

"Conflitos de terra na Amazônia pioraram", disse Ronaldo Santos, superintendente substituto no Amazonas do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), órgão do governo responsável por administrar e demarcar terras rurais.

 

“Os grandes fazendeiros têm o poder de dispensar a justiça", disse Santos à Thomson Reuters Foundation após uma reunião pública com centenas de agricultores furiosos em meio a conflitos de terra no Amazonas, no noroeste do Brasil.

 

"Temos assassinatos e mortes no campo."

 

TÍTULOS CONFLITUOSOS

 

O aumento recente da violência no campo levou autoridades de diferentes agências governamentais e cartórios a se acusarem mutuamente sobre a responsabilidade pelos conflitos.

 

No Brasil, a terra deve ser registrada por cartórios, que mantêm registros de propriedade e emitem e transferem escrituras em regiões específicas. Não existe um sistema único e centralizado para verificar quem é o proprietário de terras em todo o país.

 

Herdado dos colonizadores portugueses, o sistema de cartórios é confuso e amplamente corrompido por grandes latifundiários, disseram funcionários do governo à Thomson Reuters Foundation.

 

Eles afirmaram que a falta de clareza na propriedade das terras torna mais fácil para grandes fazendeiros despejarem pequenos agricultores como Camurça.

 

"Os cartórios têm a maior responsabilidade em legalizar a grilagem", disse Miguel Emile, funcionário do Terra Legal, um programa do governo para regularizar títulos de terras de pequenos agricultores na Amazônia.

 

Estima-se que existam 5 milhões de famílias sem terra no Brasil, de acordo com um estudo canadense de 2016. Autoridades do governo dizem que estão trabalhando para acelerar a regularização de titulação de propriedade para agricultores pobres que freqüentemente vivem em terras sem os respectivos títulos.

 

Mesmo as terras demarcadas e distribuídas por funcionários do INCRA e do Terra Legal devem ser registradas em cartórios privados para serem totalmente legais, disse Emile.

 

Os pequenos agricultores, muitas vezes, não podem pagar pelos serviços de cartório, afirmou ele, e o próprio sistema enfrenta corrupção generalizada.

 

Fazendeiros ricos podem subornar os cartórios para registrar terras de outras pessoas em nome deles, disse Emile à Thomson Reuters Foundation.

 

Normalmente, o esquema envolve as elites que compram legalmente uma pequena propriedade e, em seguida, um cartório registra uma área circundante muito maior em seu nome, disse ele.

 

No estado vizinho do Pará, como resultado desse tipo de fraude, quatro vezes mais terras foram registradas em caráter privado do que a área total do estado, disse Jeremy Campbell, especialista em direitos fundiários no Brasil da Universidade Roger Williams, nos Estados Unidos.

 

TROCANDO ACUSAÇÕES

 

Os cartórios, no entanto, dizem que eles não são responsáveis pela maior parte do problema, culpando as agências governamentais pela fragilidade do direito de propriedade da Amazônia e pela violência resultante.

 

"A grilagem não é feita por cartórios", disse um agente de cartório do Amazonas, que falou sob condição de anonimato.

 

Seu escritório, que é responsável por manter registros de terras locais, está cheio de livros de escrituras amarelados e desgastados pelo tempo, junto com alguns documentos digitalizados.

A corrupção nas agências do governo, incluindo o INCRA, é um dos principais fatores que favorecem fraudes nos registros de propriedade de terras, disse o agente de cartório, já que os proprietários podem subornar funcionários para que lhes sejam entregues terras do Estado.

 

O governo está mudando o sistema para começar a geocodificar novos registros de propriedades, de modo que a terra seja registrada digitalmente através de mapas de satélite, mas esse processo tem sido lento, acrescentou.

 

PROVANDO PROPRIEDADE

 

Despejos forçados na vila de Bom Lugar, no município de Boca do Acre, onde Camurça mora, exemplificam problemas do sistema de propriedade rural do Brasil.

 

O INCRA tinha fornecido a Camurça um título de posse. Mas o agricultor disse que não poderia registrá-lo no cartório como o título formal porque o processo de demarcação de sua propriedade não havia sido finalizado.

 

Isso significava que, apesar de uma agência do governo garantir os direitos de Camurça à terra onde ele vivia desde 1988, ele ainda não era o dono formal da área.

 

O fazendeiro que Camurça afirma estar por trás da queima de sua casa não foi encontrado para comentar o assunto.

 

O Ministério Público Federal no estado do Amazonas disse que está investigando incêndios de casas e ocorrências de despejos em todo o município de Boca do Acre.

 

O Secretário de Segurança Pública do Estado do Amazonas, Sergio Fontes, disse que a violência que afeta Camurça e outras milhares de pessoas no maior estado do Brasil deve-se à má administração das terras pelo governo.

 

"O Incra deve resolver as disputas dos agricultores com fazendeiros antes de distribuir terras, caso contrário todos esses problemas acontecem", disse Fontes à Thomson Reuters Foundation.

 

"(Funcionários) têm que assumir a responsabilidade por quem foi colocado lá."

 

* A Society of Environmental Journalists (SEJ) forneceu suporte financeiro de viagem para essa reportagem

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